Os mais antigos lembram uma propaganda de vodca em que ficou famosa a frase: “eu sou você amanhã.” O anúncio mostrava um ator que bebia muito, inteiro no dia seguinte querendo alardear que a bebida não causava ressaca. Como a vodca era muito ruim a frase foi invertida de sentido em muitas piadas.
Lembrei-me dela agora que passei uma semana em Buenos Aires. Já tinha estado lá algumas vezes no passado e admirava a bonita arquitetura da cidade (inspirada na reforma de Georges-Eugène Haussmann na Paris do século XIX), que aqui também imitamos, mas já deformamos como é do nosso estilo. Buenos Aires das outras visitas a mim parecia uma cidade europeia com seus transeuntes vestidos elegantemente, com um ar aristocrático porteño que destoava dos seus habitantes estrangeiros ou mestiços argentinos do interior. As ruas alegres, o comércio fervilhante só encontrava protestos – todas às vezes – na Plaza de Mayo.
Desta vez estive noutra Buenos Aires. Não foi pior o impacto porque já esperava o golpe provocado pela onda neoliberal que nos antecedeu por pouco. Mas confesso que foi maior que a expectativa.
O “modelito” é o mesmo ao que estamos sofrendo na pele. Retirada dos direitos trabalhistas, “uberização” das relações de trabalho, reforma da previdência pública, repressão nas periferias e aos costumes. Concentração de capital com privilégio aos rentistas.
A cidade ficou triste. As antigas bonitas fachadas estão tristes e descuidadas. Muitas lojas fechadas. Placas de “alquiler y venta”, embaixo, acima. A elegância orgulhosa porteña parece ter dado lugar a um traje discreto para suportar o frio que já começa. Impressiona a quantidade de pedintes e moradores de rua, alguns encabulados ainda com a recente situação. Jubilados (como se chama os velhos aposentados) pedintes, vendendo quinquilharias ou “assaltando” lixeiras sem cerimônia.
A aqui anunciada reforma que atingiu em cheio os jubilados foi feita há um ano e meio e já deixou marcas: com as aposentadorias congeladas e numa inflação anual de quase 50%, matou a aposentadoria mínima (9300 pesos ou 930 reais). A luz aumentou 32%, gás 35%, água 38%, o transporte 40%, apesar de muito mais barato que o nosso.
O desemprego atinge a todos e já podemos ver rostos porteños em trabalhos braçais, antes reservados aos mestiços estrangeiros e do interior. O dólar vale quase igual ao euro, numa tentativa desesperada de evitar a desvalorização da moeda. Real que compravam por 9,30 pesos já pagavam 10,00 pesos cinco dias depois nessa nossa viagem.
A reforma de Macri – como a daqui – prometia falsa e enganosamente gerar empregos. Claro que a meta da reforma é entregar a poupança do trabalhador para os rentistas e não geral capital produtivo. A Argentina, por esse caminho, entrou em uma crise profunda.
Na Plaza de Mayo não só as Madres ou os “no válido” combatentes das Malvinas, como antigamente. Hoje eles se somam as mães de filhos assassinados na periferia por policiais (“la policía dispara primero y luego preguntar”); ao movimento LBGTs (“asesinado por la policía a menudo”); os jubilados e o movimento de Salud Mental (como agora aqui, guerra às drogas ilícitas), entre outros.
O problema é que o que nos reserva o amanhã vem acompanhado de um tsunami maior. Tento explicar. A tragédia argentina foi provocada pela direita. Claro que eles tentam prender a Cristina para afastá-la da eleição de outubro, como aqui fizeram com o Lula. Senão ela ganha. Mas a direita é um pouco mais mansa, comícios pró-Cristina estão rolando. Não há qualquer receio de suspenderem a eleição.
Aqui foi eleita a extrema direita proto-fascista para fazer as reformas que o neoliberalismo deseja. O estrago será bem maior. “Eu sou você amanhã – dizemos para a Argentina – , mas o estrago proto-fascista será maior.
Como nos disse um velho peronista, motorista de táxi, enquanto conversamos sobre a situação de nossos países rodando pelas ruas de Buenos Aires: – “Bolsonaro es un delincuente!”
Edmar Oliveira é Psiquiatra, blogueiro, aprendiz de escritor, leitor contumaz, comunista utópico, socialista desejante