Trecho de “Ouvindo Vozes”, Vieira & Lent, RJ, 2009. Esse trecho mostra o início das transformações acontecidas no Hospital do Engenho de Dentro. Antes das Residências Terapêuticas. Apenas uma ensaio da saída definitiva. Se não aconteceu o fim do manicômio, aconteceu a travessia em que tentamos. Há muitas histórias de sucesso, enquanto fazíamos a travessia.
Já nos referimos ao incômodo que causava a situação dos moradores do hospício. Tudo neles era de um absurdo assustador e nenhuma questão aparente se colocava à vida que segue no hospício. Moravam em enfermarias. Tinham o aparelhamento de cura no seu entorno. Mas como eram mansos de coração não careciam de atenção. Quase que invisíveis. Não incomodavam. Raramente agitavam. Se abrissem as portas saiam. Se fechassem as portas, ficavam. Se não vinham comer, tomar remédio, ninguém notava muito não. Na contagem dos leitos podiam não ser achados e fazer alguma falta. Nem sempre. Os mais mansos podiam até dormir fora da enfermaria. No outro dia voltavam. E esta vida sem importância, sem abalos na saúde, fazia do prontuário um repetir incontável do mesmo escrever. Podia se fazer um carimbo e repetir: quadro inalterável, medicação mantida. Ou, quadro mantido, medicação inalterada. Tanto fazia. A morte descia dos umbrais e abocanhava uma alma na maior naturalidade. Tinha chegado a hora. Constatado o óbito. Parada cardíaca.
O Programa de Moradias, parte da proposta de intervenção que pensava as ações para os pacientes denominados moradores, coloca uma questão radical a partir da situação paradoxal que nos referimos anteriormente.
Se o paciente morasse no hospício há mais de dois anos, era considerado morador. E morador tem morada. Portanto, onde se mora não tem médico, enfermeiro, posto de enfermagem, mas casa. Mas vamos devagar, porque o programa começou ainda nas enfermarias tradicionais. Saíram os técnicos de enfermaria. Foram contratados cuidadores. Invenção, meio que baseada nos cuidadores de idosos. Mas não exigimos grande formação. Cuidador tem cuidado. Pessoas da comunidade, da firma de limpeza ou da segurança, gente que se relacionava bem com os pacientes. Formamos uma equipe. Fizemos um curso de treinamento. E o programa inicia. Cuidador cuida: da higiene, do passeio, da organização do cotidiano, das banalidades que a vida nos sujeita. Fica mantido um médico, com formação em Saúde da Família, para fazer diagnóstico e encaminhar para tratamento especializado: psiquiátrico no ambulatório ou no CAPS. Hipertensão, diabetes, nos programas de prevenção nos postos de saúde. Consultas especializadas nos ambulatórios e hospitais terciários, assim como as gentes comuns da cidade. Uma pequena equipe de enfermagem fica no programa para ações especializadas privativas: fazer injeções, curativos, passar sonda, etc., e procurada pelos cuidadores para o atendimento de seus usuários.
Isso provocou uma verdadeira reviravolta no hospício. Os funcionários antigos, retirados dos cuidados ficaram revoltados. Vieram as acusações de falta de cuidados com os doentes, que agora eram tratados apenas como moradores. Os dados estatísticos foram cruéis com estes críticos. Primeiro o índice de mortalidade, daquelas mortes constatadas, baixou demais. Os materiais de enfermagem, com gaze, anti-sépticos, seringas, algodão, etc., tiveram um consumo aumentado. Não pelo desperdício (note-se que estas ações eram feitas pelos técnicos), mas pelo melhor cuidado que o cuidador solicitava do técnico..
E o cuidador colocou uma nova ordem de prioridades. Fizemos compras de camisas de malha de diversas cores, calças de vários modelos, tênis, sapatos, chinelos de uma variedade para a escolha. Perfumes, desodorantes de muitos tipos. Guardamos tudo isso numa sala, na qual o cliente era levado para escolher o seu kit. Começava uma individualidade de verdade. Mesmo ainda nas enfermarias o morar foi decidido por uma relação afetiva e não da ordem dos técnicos ou por diagnósticos. Foi um troca-troca danado. Quase não pára, mas se aquietou.
Isso foi o que podemos falar de fase um. Mudanças drásticas. A paciente que nunca calçara chinelos, se teve o cuidado de fornecer um com amarrado por trás para que não se perdesse. O mesmo com sapatilhas de pressão para mulheres. Logo, logo, estavam acostumados. Número de sapato no tamanho do pé. Parece bobagem? E é, mas no hospício não é. Um com camisa azul, outro de verde, moças de vestidos de moças, que o hospício nunca vira. Hábitos e costumes de mudança galopante. Banalidades do cotidiano. Nenhuma invenção.
Um episódio de destaque. Lenira não quis as vestes novas. Continuava com sua farda brim azul hospício ou cinza manicômio, não querendo os vestidos e outras roupas novas oferecidas. Lembro que o diagnóstico técnico era o do quadro psiquiátrico. Ensimesmada, não aceitava mudanças. E o diagnóstico do saber ia se impondo. Uma cuidadora, usando o senso comum, sem se conformar com a atitude de Lenira, fica a sós com ela e mostra roupas com perguntas pertinentes: “Você não gosta destas roupas?” – “Gosto”. – “E porque não troca?” – “não quero ir embora”!. Deus do céu! Estava gravada em Lenira a memória das razões do hospício. A farda de brim para os internos, na alta a roupa civil… Explicado que ela não teria que ir embora, aceitou as roupas com um sorriso impagável…
Edmar Oliveira é psiquiatra, blogueiro, aprendiz de escritor, leitor contumaz, comunista utópico, socialista desejante