A série documental “Todo Dia a Mesma Noite”, sobre a tragédia da boate Kiss, em Santa Maria, estreou no final de janeiro no canal de streaming.
A advogada Juliane Müller Korb, que representa 42 famílias de vítimas e sobreviventes da boate Kiss diz que existe a chance de um processo contra a Netflix por causa da série ficcional Todo Dia a Mesma Noite, mas que seus clientes “querem um diálogo colaborativo” com o serviço de streaming, para evitar o que chamam de “exploração comercial da tragédia”.
Segundo Juliane, as famílias que ela representa pretendem pedir uma explicação à Netflix sobre por que não foram ouvidas ou consultadas. Ela alega que muitas só tomaram conhecimento da série no dia de seu lançamento, em 27 de janeiro, marco de dez anos da tragédia.
A Netflix ainda não se pronunciou sobre o caso. O fogo, que aconteceu durante a festa universitária “Agromerados”, causou a morte de 242 pessoas e deixou mais de 600 feridas, em sua maioria jovens adultos.
As famílias também pedem a alteração no trailer exibido na TV e nas redes sociais que inclui cenas do reconhecimento dos corpos em um ginásio, “um conteúdo sensível que fez alguns reviverem o trauma”, diz Müller Korb. Por fim, desejam “debater a responsabilidade social de produções audiovisuais baseadas em fatos reais”, acrescenta a advogada.
“As famílias não querem a utilização comercial da tragédia às custas de dor e sofrimento. Faltou sensibilidade à Netflix. Ficou para elas um sentimento de resignação, de indignação, de dor e de revolta muito grande”, segundo Müller Korb.
Ao mesmo tempo, diz a advogada, “ninguém quer que essa tragédia seja esquecida, que seja varrida para debaixo do tapete; por isso, a necessidade de uma avaliação minuciosa sobre os próximos passos” — o que incluiria, eventualmente, uma ação judicial contra a plataforma de streaming. Há relatos de familiares de vítimas e sobreviventes sendo abordados por empresas interessadas em vender artigos, como bebidas e camisetas, com promessas de que parte da renda seja revertida em benefício deles, o que, segundo a advogada, “gerou ainda mais revolta e indignação”.
Müller Korb reforça que as famílias não querem “qualquer tipo de compensação financeira”. E que a ideia de construção de um memorial em homenagem às vítimas, inicialmente contemplada, foi descartada após a assinatura do termo de compromisso pelo prefeito de Santa Maria, Jorge Pozzobom (PSDB), de que um monumento seria erguido.
As obras devem começar ainda este ano, mas não há uma data definida, prometeu o prefeito. Permanece em discussão, no entanto, a possibilidade de pedir à Netflix que parte dos lucros sejam repassados para o tratamento dos sobreviventes.
Dividida em cinco episódios, a série, que mistura realidade e ficção, é baseada no livro homônimo da jornalista Daniela Arbex e retrata a história de quatro familiares específicos. As vítimas, familiares e amigos são interpretados por atores. A produção tem recebido críticas positivas da imprensa e de usuários nas redes sociais. Muitos destacam a sensibilidade com que a obra audiovisual tratou a tragédia.
A série contou com o apoio da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) que, em nota assinada pelo seu presidente, Gabriel Rovadoschi Barros, informou não ter relação com qualquer intenção de processar a Netflix.
Segundo a advogada, as famílias reconhecem que a série gerou “forte comoção social”, mas temem que, “ao visar o lucro”, possa encorajar outras formas de “mercantilização” da tragédia.
Confira a íntegra da nota da AVTSM:
Perante a divulgação em inúmeros veículos da imprensa acerca de um processo contra a empresa Netflix em função da série “Todo o dia a mesma noite”, a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da tragédia de Santa Maria esclarece através dessa nota que estávamos sim cientes que a produção estava sendo realizada com base nos personagens do livro “Todo dia a mesma noite: a história não contada da Boate Kiss”, de Daniela Arbex, e sente-se representada por ela bem como pelo livro da autora.
A produção não retrata de forma individual os 242 jovens assassinados, mas sim um recorte das quatro famílias de pais que foram processados. Todos familiares de vítimas e sobreviventes retratados por personagens da obra estavam cientes e em concordância. Além disso, reiteramos que não estamos movendo nenhum processo contra as produções, nem pretendemos, por acreditarmos na potência das produções na luta por justiça e a luta por memória.
Acreditamos, acima de tudo, que tragédias como a que vivenciamos precisam ser contadas através de todas as formas. Recontar essa história significa denunciar as inúmeras negligências e tentativas de silenciamento que encontramos pelo caminho, além de auxiliar na prevenção para que esse tipo de tragédia não aconteça com mais nenhuma família, algo que temos como propósito desde o 1º dia de nossa fundação.
Mostrar o que aconteceu na Kiss faz com que a morte de nossos filhos e filhas, irmãos e irmãs, pais e mães, amigos e amigas não tenha sido em vão. Mostrar a morosidade, a burocracia e como é o sistema judiciário brasileiro serve como denúncia e como protesto. É preciso falar, debate, produzir materiais sobre o que aconteceu naquela trágica noite de 27 de janeiro de 2013, pois só assim conseguiremos que as pessoas entendam o que a ganância, a negligência e a omissão são capazes de fazer. Em Santa Maria, esses fatores mataram 242 jovens e deixaram 636 com marcas físicas e psicológicas.
Entendemos que rever a tragédia, principalmente nos dois primeiros episódios pode mobilizar os sentimentos, as lembranças e dimensionar a impunidade em sua ferocidade, e, com isso, a associação se disponibiliza a acolher e a promover ações para comporem o movimento por justiça.
Por fim, esclarecemos que desde o dia 27 de janeiro de 2013, nós sofremos com a perda irremediável de nossos filhos, irmãos e amigos, sabemos o quanto isso nos dói. Não há nenhum valor sendo pago a nós com a produção, e o que ganhamos é a crença no fortalecimento na luta por justiça e pela memória. Para que não se repita.
Santa Maria, 29 de janeiro de 2023.
Gabriel Rovadoschi Barros
Presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria.