Domingo, meio dia, nas proximidades da Lagoa Rodrigo de Freitas, região privilegiada do Rio de Janeiro, um carro parado em um sinal é atacado por um morador de rua, conhecido na região. O motorista e sua acompanhante são brutalmente esfaqueados. O rapaz ainda sai do carro, mas cai moribundo, a moça corre e seus ferimentos felizmente não foram fatais. Um professor de educação física tenta ajudar as vítimas e também é golpeado mortalmente. Um médico salta de uma ambulância que passava no local e ainda tenta ressuscitar as vítimas que falecem no local. A polícia chega rapidamente. Tenta conversar com o irredutível criminoso. Disparam armas não letais, sem êxito para parar o agressor. Os policiais tentam deter o homem ensandecido atirando nas pernas e nessa operação ainda um tiro atinge de raspão o agressor na cabeça. Uma socorrista que chegava também é atingida na perna, e dois outros bombeiros e o médico que prestava socorro foram atingidos por estilhaços dos tiros.
Um crime brutal, não pertencente às estatísticas de violência ligadas ao crime de roubo ou ações criminosas tão comuns na cidade, mas um crime inexplicável, sem motivação aparente, acontecido a partir de um rompante enlouquecido de um morador das ruas dessa cidade. Ruas cada dia mais apinhadas desses desvalidos sociais, que crescem assustadoramente pela crise econômica que nos atinge violentamente.
Cawboy, como era conhecido o agressor aparentemente imotivado, não fazia parte de novas estatísticas de desvalidos. Vivia nas ruas e naquele local há pelo menos três anos. Outros moradores de rua já tiveram problemas com ele e tentaram expulsá-lo da região. Tem histórico de agressão e invasão de propriedades privadas, numa delas alegando ser o dono da propriedade.
A população, excitada pela violência que nos permeia – e que não responde a opressão de nossas autoridades no combate ao crime com mais agressividade – pede mais violência, recolhimento da “horda de desassustados” das ruas, maior repressão. E como remédio pede a hostilidade, a coerção, com a impetuosidade de quem já não aguenta mais, tomando todos s desvalidos como potenciais assassinos. Contribuem assim para a selvageria, a exasperação, a cólera e a ira que nos governam nesses tempos de intolerância.
A autoridade maior do Estado, o governador fascista que foi eleito, ao invés de pensar soluções com especialistas na questão social que nos atinge dramaticamente, bota mais lenha na fogueira ao criticar os policiais que agiram com cautela, declarando que se fosse ele atirava na cabeça do agressor. Parece que nosso governador tem uma fixação por atirar na cabeça de gente pobre – como fez no sobrevoo de helicóptero com Snipes atirando num acampamento ilegal, que por sorte estava vazio. O presidente com seus estapafúrdios lamentou que não tivesse ninguém armado para dar um tiro no agressor. Natural pra quem se elegeu fazendo arminha!
E essas declarações atiça a já intolerância incontida de uma classe média ameaçada por um futuro que não admite poder acontecer com ela. Escondam a realidade por favor, matem-na se preciso for!
É com imensa tristeza que tentamos entender o que não se pode mais entender quando a barbárie fez sua passagem ao ato. O que aconteceu foi o prenúncio da barbárie total que pode nos atingir. O casal, acidentalmente escolhido, e o bom homem que tentou socorrer as vítimas foram sacrificados nesse espectro da barbárie que se anuncia. Mesmo com o socorro chegando prontamente e a polícia agindo com uma cautela civilizada incomum. Os policiais merecem parabéns, apesar dos efeitos colaterais momentâneos complicados, mas que não foram letais.
Quem trabalha com moradores de rua sabe que não se pode tratar da questão como um grupo homogêneo. Encontramos quem tem residência muito longe, mas que não pode ir para casa todos os dias pelo preço exorbitante do transporte público. Outros, muitos menores, fugiram de uma vida de opressão e abusos de toda espécie para fazer da rua a liberdade que não tinham. Há os pedintes, mendigos profissionais, vendedores de bugigangas e lanches ligeiros, viradores inventivos da falta do emprego formal, aplicadores de pequenos golpes, furtos encomendados, guardadores de pedaços de rua conquistados bravamente, etc. Ainda outros têm na droga talvez o último refúgio de uma situação desesperadora, ou/e negociam pequenas quantidades de drogas para a necessária sobrevivência. Muitos foram para as ruas despejados de uma vida que não puderam sustentar e podem diluir-se em outros agrupamentos ou sofrer enormemente com a perda da dignidade. Alguns se refugiam na loucura porque estão equipados com um potencial constitutivo disparado pela situação de abandono. Aqui apenas alguns exemplos de uma diversidade espantosa.
Os moradores de rua são seres vulneráveis, que o estado deve conhecer com vagar e aproximações responsáveis para cuidados que cada grupo venha a requerer. O que vivemos hoje é um abandono irresponsável desses seres humanos em situação de vulnerabilidade extrema. Um programa de recolhimento sem respeitar peculiaridades resulta em enxugar gelo. Os abrigos existentes são insuficientes e funcionam como prisões indesejáveis.
Os governos estão abandonando essas pessoas à própria sorte. Cowboy já tinha dado sinais de um acometimento mental – que o médico que prestou socorro às vítimas tentou diagnosticar. Os serviços de saúde mental vêm sofrendo uma desmontagem absurda. Com ações desastradas o governo evitou o encontro de Cowboy com um serviço que pudesse ajudá-lo. E ele foi acumulando nas ruas influencias delirantes materializadas no abandono e a paranoia que uma cidade arredia e com medo pode provocar. Ele também é vítima de sua loucura. E sua loucura é fruto da barbárie na construção que estamos fazendo de nossa sociedade.
Portanto, não são ações de repressão, recolhimento, internação, em suma uma apartheid dos que têm casas com os que não têm. Assim só geraremos mais barbaridade, crueldade, violência, estupidez, selvageria. Porque não adianta tirá-los de nossas vistas. Eles voltarão.
Ou os governos priorizam ações para atender os mais vulneráveis – e parece que não estão dispostos a fazê-lo – ou a barbárie apenas começou mostrar sua crueza. Enquanto tentamos separar vítima de agressores descobriremos dolorosamente que seremos todos vítimas da barbárie. E todos, agressores para tentar sobreviver.
O crime brutal da Lagoa foi um doloroso alerta vermelho. Se não soubermos lê-lo, sucumbiremos!
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Ilustração: Juízo Final de Hieronymus Bosch, fragmento