26/11/2024

Saúde

Inovações científicas florescem no Piauí apesar da ausência de incentivo e divulgação

Pesquisadoras da área da biotecnologia lideram projetos que auxiliam no tratamento a doenças neurológicas e infecciosas

Compartilhe agora

Publicado por: FM No Tempo 03/04/2022, 10:34

Matéria de Eric Souza e Lilian Oliveira

Ouça a matéria especial no Anchor.fm

Durante um bom tempo, as iniciativas científicas foram solenemente ignoradas por uma parcela considerável da população brasileira. Um estudo encomendado em 2018 pela organização britânica Wellcome Trust e conduzido em 144 países revelou que 73% dos brasileiros desconfiavam da ciência, enquanto 23% acreditavam que ela pouco contribui para o desenvolvimento econômico e social da nação.

No entanto, com o surgimento da crise sanitária produzida pela pandemia de Covid-19, é possível afirmar que o relacionamento da sociedade humana com a ciência alterou-se de forma profunda. Em meio às incertezas e aflições verificadas durante o cenário pandêmico, os olhos do planeta inteiro se voltaram aos cientistas em busca da vacina e de medidas de contenção da doença.

Valécia Carvalho e Alyne Rodrigues, biomédicas da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação/UFPI/UFDPar)

Para além do novo coronavírus, os trabalhos desenvolvidos por pesquisadores de outras áreas da saúde, especialmente no Piauí, têm apresentado resultados ao mesmo tempo promissores e satisfatórios. A biomédica Valécia Carvalho, doutora pela Rede Nordeste de Biotecnologia (Renobio) e parceira do Núcleo de Pesquisa em Biodiversidade e Biotecnologia (NPBio) da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar), desenvolveu, como parte de sua tese de doutorado, um sensor de detecção de dopamina.

“A dopamina é um neurotransmissor muito comentado atualmente; sua principal função é controlar o movimento do corpo humano. Quando está alterada, temos quadros clínicos bem conhecidos: esquizofrenia (aumentada), mal de Parkinson e depressão (diminuída)”, explica a cientista.

Atualmente, tais doenças são diagnosticadas por meio de avaliações clínicas feitas por médicos, os quais recorrem a exames de imagens. O intuito do sensor é ser utilizado, ao lado dos recursos já existentes, como uma ferramenta de auxílio diagnóstico dos níveis de dopamina no organismo.

“A base do funcionamento do sensor é a eletroquímica, ramo que estuda a produção da corrente elétrica a partir de reações químicas como a oxirredução. Nesse tipo de reação, um material sofre redução e o outro, oxidação; dentro disso há um deslocamento de elétrons que gera energia. Trabalhamos com a dopamina, uma molécula eletroativa, cuja energia é coletada por um equipamento e conduzida ao computador, que produzirá um gráfico da quantidade de dopamina”, ilustra a biomédica.

Valécia Carvalho e seu equipamento que registra níveis de dopamina no corpo humano (Foto: Arquivo Pessoal)

A descoberta de Valécia foi publicada na Biosensors and Bioelectronics, uma renomada revista do meio acadêmico, cujos especialistas aprovaram a eficácia e a funcionalidade do produto desenvolvido por ela, em parceria com o Laboratório de Neuroinovação Tecnológica e Mapeamento Cerebral (NiTLab) e o Laboratório Biotec. Os laboratórios, inclusive, cederam seus espaços físicos, materiais e equipamentos. Mesmo com todo esse apoio, a doutora lamenta a falta de incentivo governamental para a sua iniciativa.

“Às vezes a população nem sabe sobre o desenvolvimento desse tipo de produto em uma universidade. Acho que a pandemia trouxe um novo olhar, uma sensibilidade para a ciência, a qual legou importantes inovações à sociedade no cenário pandêmico”, considera.

No tocante à Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2022, o governo federal destinou ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) o montante de R$ 6,6 bilhões para o financiamento de bolsas e infraestrutura de pesquisa. Porém, pesquisadores de todo o país apontaram que o valor não seria suficiente para a sobrevivência de incontáveis projetos científicos.

A título de exemplo, o orçamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), aumentado em 47%, chega a somente R$ 35 milhões. De outro lado, o financiamento das bolsas de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) alcançou o patamar de R$ 3,14 bilhões; essa quantia, segundo a presidente do programa, Claudia Toledo, fará com que um déficit mínimo de R$ 800 milhões seja registrado ao final do ano.

Sede do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, em Brasília (Foto: Herivelto Batista/MCTI)

Na visão de Alyne Rodrigues, que também é doutora pela Renobio e membro do Grupo de Estudos Avançados em Micologia Médica (Geamicol) da UFDPar, uma solução seria contar com o apoio das iniciativas privadas.

“Para contribuirmos a médio e longo prazo precisamos de investimento em pesquisas, em particular do setor privado. Infelizmente ainda não temos essa cultura no Piauí; portanto, dependemos muito de fundações e dos próprios governos, cujos financiamentos, que já eram poucos, vêm sofrendo sucessivos cortes”, avalia.

O projeto da pesquisadora envolve um extrato vegetal voltado para o tratamento da candidíase, uma infecção causada por fungos que se manifestam em diferentes partes do corpo tanto de homens, quanto de mulheres. Além de ser transmitida por relações sexuais, a doença está associada a alguns grupos de risco, tais como pacientes portadores do vírus HIV, que fazem uso prolongado de medicamentos (antibióticos, imunossupressores, corticoides), mulheres grávidas e que possuem diabetes.

Para combater a candidíase, especialmente nesses públicos, o grupo liderado por Alyne se concentrou no desenvolvimento do extrato, coletado de maneira sustentável da própria natureza e encaminhado ao laboratório, onde, depois de limpo, seco e triturado, é posto em contato com um solvente.

Alyne Rodrigues desenvolveu um extrato vegetal para o tratamento da candidíase (Foto: Divulgação/UFPI/UFDPar)

“Depois de alguns dias, o pó obtido do líquido é testado em diferentes atividades biológicas. Conduzimos testes in vitro e demonstramos que o extrato possui o potencial de inibir o crescimento de diferentes fungos, dentre eles os do gênero Candida, em especial os resistentes ao fluconazol”, aponta, fazendo referência ao conhecido remédio antifúngico.

Além do extrato natural, a biomédica também supervisiona a testagem de produtos naturais contra bactérias multirresistentes. Ela aponta que o uso desordenado de antibióticos aumentou de forma considerável em função dos efeitos da pandemia de Covid-19. O objetivo dos cientistas é evitar as previsões catastróficas de que microrganismos dotados de grande resistência surjam e levem pacientes a óbito por falta de opções terapêuticas.

“A principal motivação do cientista sempre vai ser resolver os problemas enfrentados pela sociedade, bem como antecipar, prever outros que apareçam no futuro; assim, começaremos a estudá-los com antecedência e, quando enfim ocorrerem, não estaremos tão despreparados”, pontua.

De fato, ainda que negligenciadas pelos organismos governamentais e, em razão disso, não cheguem ao amplo conhecimento da população, as inovações científicas trazem enormes benefícios à sociedade em praticamente todas as áreas, sobretudo na saúde, economia e tecnologia. O exemplo das doutoras, que persistiram em fazer ciência mesmo diante de condições tão desfavoráveis, certamente servirá de inspiração para pesquisadores novatos e veteranos ao redor do Brasil.

Compartilhe agora
Contato
  • (86) 99972-0111
  • jornalismo@teresinafm.com.br


Anuncie conosco
  • (86) 98153-2456
  • comercial@teresinafm.com.br
Teresina FM